A irlandesa Kelllie Harrington novamente estragou os planos de Bia
Ferreira nos Jogos Olímpicos. Após vencer a final em Tóquio-2020, a rival
voltou a derrotar a baiana, desta vez pela semifinal em Paris. Como não tem
disputa de terceiro lugar no boxe na Olimpíada, a brasileira ficou com a
medalha de bronze.
A cobertura dos Jogos de Paris no Terra é um oferecimento de Vale.
Com a nova derrota, Bia encerra a carreira sem conquistar a "mãe de
todas", como apelidou a busca pelo ouro olímpico, único título que não tem na
carreira. Ela já afirmou que a edição na capital francesa vai representar a sua
despedida dos Jogos Olímpicos. A partir de agora, ela quer se dedicar apenas ao
boxe profissional.
Amor pelo boxe desde cedo
Na escola, aprendemos que certas funções do nosso corpo são desempenhadas sem
que precisemos designar um pensamento de comando com relação a isso. São
funções como a produção de saliva, a contração das pupilas quando saímos ao
sol, e a própria respiração. Para pessoas comuns, as chamadas funções involuntárias
se resumem às listadas nos livros de biologia. Para Beatriz Ferreira, porém, é
possível adicionar mais uma à lista.
Era só ouvir o barulho do toque da luva contra o saco de pancada que uma
pequena Bia, ainda sem muita consciência de mundo, descia as escadas que davam
para a garagem de casa, onde o pai treinava e mantinha uma academia de boxe.
"Bia chorava, ela chorava muito. Eu falava: "Essa casa deve ser muito
quente". Quando eu descobri que, na verdade, não era isso. Ela ouvia o barulho
das luvas e queria descer para poder ver. Só que ela não sabia nem falar ainda.
Uma vez, me distraí, ela foi parar na academia e ralou o joelhinho", contou
Suzana Soares, mãe da campeã mundial de boxe, ao especial Elas no Pódio.
A sorte de Suzana é que, se formos pensar estatisticamente, ela tem mais
chances de falar com uma vencedora do que a mãe de qualquer adversária de Bia.
Ela estreou no boxe profissional apenas em 2022. De lá para cá foram cinco
lutas, cinco vitórias e um cinturão mundial. Antes disso, Bia Ferreira já tinha
um currículo para lá de vencedor na categoria Peso Leve (60 kg) no boxe amador:
vice-campeã olímpica em Tóquio e bicampeã Mundial e Pan-Americana.
Durante a conversa com a reportagem para o especial, que aconteceu antes
da Olimpíada, a boxeadora deixou de lado o machucado no joelho, mas repetiu o
mesmo enredo da mãe: era só ouvir a luta que involuntariamente ia atrás. "Eu
não lembro de conhecer o boxe, porque o boxe já estava lá", diz.
Mesmo sem conseguir traçar a primeira memória com a modalidade, algumas
lembranças vão surgindo, como o peso que o pai fez com um tubo de água ou
quando ganhou sua primeira luva, que foi herança de família.
Anos depois daquela queda da escada, não é mais com os joelhos ralados
de Bia que Suzana se preocupa. A mãe teme os golpes que a filha sofre em cima
do ringue. Após cada luta, Bia liga para a mãe, que ainda insiste: "Eu digo:
"Tá, mas faz Zoom [ferramenta de chamada de vídeo] aí, eu quero ver'", conta,
se referindo a uma videochamada para ter certeza que a filha realmente está bem
e não recebeu muitos golpes das adversárias.
Legado de Bia Ferreira
"Bia deixou um legado absurdamente grande para o boxe brasileiro. Ela quebrou
todos os recordes de números de vitórias, medalhas, rendimento esportivo, de
todos os boxeadores brasileiros, homens e mulheres da história. Bia é hoje a
atleta olímpica do Brasil mais vitoriosa da história do boxe brasileiro."
As palavras acima são do atual técnico de Bia Ferreira na Seleção
Brasileira de Boxe, Mateus Alves. O uso do verbo no passado indica que, de
fato, esta será a última Olimpíada da baiana.
Não dá para saber ao certo a quantidade, mas é fato que ela já impactou
muitos boxeadores brasileiros. O que podemos afirmar, com certeza, é a
influência que Bia tem sobre as pessoas ao redor dela. Sua namorada, a
velocista e atleta olímpica Ana Carolina Azevedo conta que o relacionamento com
Bia a tem impulsionado também no esporte.
"Eu melhorei muito desde que comecei o meu relacionamento com ela. E
pretendo melhorar 10 vezes mais, porque ela me incentiva muito, me inspira. Eu
a amo como atleta e como pessoa", derrete-se.
Morando juntas, elas dividem uma rotina de casadas. Como os treinos são
intensos para ambas, Bia e Ana Carolina aproveitam toda oportunidade que têm
para ficar juntas. Às vezes, algumas datas especiais, como o aniversário da
velocista, precisam ser comemoradas em outro dia para se adequar ao calendário
das competições. A parte boa das duas serem atletas é a compreensão mútua e o
apoio que dão uma à outra.
Para o futuro, o casal está bem alinhado. Elas têm o sonho de ser mãe e,
mesmo sem saber, carregam histórias parecidas que podem ter influenciado no
desejo de maternar. Ana Carolina cuidou do irmão mais novo quando perderam a
mãe, o que aflorou ainda mais o instinto.
Bia, por outro lado, sempre teve a mãe ali. Mas tendo 10 anos a mais que
a irmã Samira, criou uma relação de cuidado e proteção com a mais nova. "Quando
eu era criança, quem cuidava de mim era a Bia. Minha mãe ia trabalhar, meu pai
também. Ela é minha segunda mãe", conta Samira.
Bia prefere não estimar quando serão mamães, já Ana Carolina consegue
ser um pouco mais precisa. A velocista, que diz sentir "o útero coçar", espera
realizar o sonho em uns dois anos, e se imagina sendo "a mais chatinha" na
criação, enquanto Bia seria a mãe brincalhona, adjetivo que aparece em quase
todas as descrições sobre a boxeadora.
Quando chegar o momento, Beatriz Ferreira vai continuar fazendo o que
faz de melhor, ser "uma referência". "É muito bom ter esses espelhinhos, assim,
pequenos", diz a boxeadora, sobre o amor que sente por crianças.
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