A Polícia Federal alterou após cinco anos a interpretação dada a mensagens trocadas entre um policial da Divisão de Homicídios (DH) do Rio de Janeiro e uma testemunha supostamente usada para atrapalhar as investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
O policial Marco Antônio de Barros Pinto, o Marquinho DH, foi indiciado
pela PF sob suspeita de obstruir as investigações do caso principalmente com
base nas mensagens que trocou com o PM Rodrigo Ferreira, o Ferreirinha. Em
2019, a corporação entendeu não haver crime no mesmo conjunto de diálogos.
O delegado Leandro Almada, atual Superintendente da PF no Rio, presidiu
a investigação em 2019 e também assinou o relatório enviado este mês ao STF
(Supremo Tribunal Federal) sobre o caso Marielle.
A PF no Rio de Janeiro afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa,
que o relatório final de 2019 apontou irregularidades de Marquinho DH. Disse
que o contexto voltou a ser analisado quando a corporação entrou oficialmente
na apuração do homicídio.
A corporação também declarou que à época da primeira investigação não
tinha conhecimento do envolvimento dos delegados Rivaldo Barbosa e Giniton
Lages na suposta obstrução da apuração do assassinato. A informação consta da
delação premiada do ex-PM Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do crime.
As mensagens também foram usadas para reforçar as suspeitas sobre
Rivaldo, então chefe de Polícia Civil, e Giniton, então diretor da DH, no
relatório enviado ao STF.
A PF prendeu no último dia 24 o deputado federal Chiquinho Brazão e o
irmão dele Domingos Brazão, conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do Estado),
sob suspeita de encomendar a morte de Marielle. Rivaldo Barbosa foi detido sob
suspeita de que teria ajudado a planejar o crime e atrapalhado a investigação.
Giniton e Marquinho DH foram alvos de busca e apreensão e estão sob
monitoramento de tornozeleira eletrônica.
Trechos do relatório enviado ao STF indicam que a mudança de
interpretação ocorreu em razão das informações da delação premiada de Ronnie
Lessa.
Nela, o acusado de executar o crime afirma ter ouvido dos Brazão que
Rivaldo iria atuar para desviar o foco das investigações. Como a Folha de
S.Paulo mostrou, não há provas de corroboração que confirmem este ponto da
colaboração.
O relatório não traz menções do ex-PM a Giniton ou Marquinhos DH. Mas a
PF afirma que os dois atuaram intencionalmente de acordo com a pretensão
atribuída por Lessa a Rivaldo.
"Agora que foram trazidos indícios de que a origem dessa trama, cujo
protagonismo recai sobre Ferreirinha, foi idealizada por Rivaldo e pelos irmãos
Brazão, conforme detalhado por Ronnie Lessa ao narrar o tema da terceira
reunião com os mandantes, a DH criou essa cortina de fumaça para, de forma
espúria, apresentar à sociedade a tão cobrada elucidação do caso Marielle e
Anderson e escudar-se de investigar, de fato, aquelas pessoas que estão em
torno dos fatos", diz o relatório.
As principais suspeitas contra Marquinho DH giram em torno da relação
com Ferreirinha. O PM procurou a PF em abril de 2018 para apontar, de acordo
com as investigações, falsos mandantes do crime. Ele acusou o ex-PM Orlando de
Araújo, o Orlando Curicica, e o ex-vereador Marcelo Siciliano.
Os delegados federais levaram Ferreirinha para a DH sob intermédio de
Rivaldo. O PM prestou depoimento, e seu relato orientou por um período as
diligências do inquérito.
Após a identificação da farsa, ainda em 2018, a PF instaurou um
inquérito para apurar os responsáveis por tentar atrapalhar as investigações. A
apuração levou ao indiciamento de Ferreirinha e de sua advogada Camila Nogueira
em maio de 2019. Eles respondem a ação penal ainda não julgada.
No curso da investigação, a PF teve acesso a troca de mensagens entre
Marquinho DH e o PM.
Na ocasião, a PF afirmou que "a maioria dos diálogos se mostrou
compatível como sendo contatos profissionais na busca por informações".
Apontou, contudo, que "algumas ações identificadas trazem em si indícios de que
tenha havido indevida orientação da testemunha e manipulação de informações".
O relatório do inquérito, que ficou conhecido como "investigação da
investigação", encerrou com a conclusão de que não havia evidências de
participação do policial na infiltração da testemunha no caso Marielle.
"Em que pese as irregularidades relatadas, entendo ter restado
evidenciado nos autos que servidores estaduais não tiveram qualquer
participação na criação do enredo apresentado pela testemunha em 30/04/2018 no
Círculo Militar, assim como na engenharia de surgimento desta", afirmou Almada
em seu relatório, na ocasião.
No relatório enviado ao STF quase cinco anos depois, a PF afirma que os
indícios de manipulação de testemunha indicam que Marquinho DH teve
participação direta no infiltração de Ferreirinha no inquérito para atrapalhar
as investigações.
"A deflexão da investigação para a falsa imputação em face da dupla
Marcelo Siciliano e Orlando Curicica, por meio da utilização da testemunha
Ferreirinha, no entanto, foi o ápice das diligências obstrutórias emanadas pela
dupla [Giniton e Marquinho]", diz o relatório da PF.
A mudança na interpretação sobre as mensagens fica mais clara ao
analisar a conversa na qual Ferrerinha pede a Marquinho ajuda para conseguir
uma transferência de batalhão. Em um áudio, o policial afirma que Giniton
conversaria com Rivaldo para ajudá-lo.
Em 2019, a PF entendeu a conversa como um compatível contato
profissional, considerado "normal a se considerar o contexto".
No relatório enviado ao STF, o empenho em favor da transferência foi
descrito como uma "sanha" para atender a solicitação de Ferreirinha.
"Diante de todo esse cenário, restou latente que Rivaldo Barbosa, chefe
de Polícia à época, intercedeu junto ao comando-geral da PM para que fosse
viabilizada a transferência de Ferreirinha do 15º BPM para a DGP, em razão dos
serviços por ele prestados na dinâmica de imputação indevida da autoria mediata
do crime ora investigado a Marcelo Siciliano e Orlando Curicica", diz o
relatório.
Apesar das mensagens de Marquinho DH citarem Giniton e Rivaldo, os dois
nem sequer tiveram a conduta avaliada na conclusão do inquérito encerrado em
2019.
Além das mensagens, Marquinho DH é citado no episódio de sumiço do
celular apreendido com um investigado de ter clonado o carro usado no homicídio
de Marielle e Anderson. Ele foi apontado pelo suspeito como responsável pela
condução do flagrante.
Giniton, por sua vez, ainda tem contra si suspeitas em relação às falhas
na colheita e análise das imagens e suposta colaboração no não esclarecimento
de homicídios envolvendo bicheiros e milicianos.
Rivaldo é citado por Lessa em sua delação, a partir de relatos que o
ex-PM disse ter ouvido de Domingos Brazão. O conselheiro teria dito, segundo o
delator, que o delegado iria desviar o foco da apuração para proteger os reais
mandantes e executores.
ITALO NOGUEIRA
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)