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Mercado das milhas entra em crise e abre debate sobre legalidade das vendas

Segundo advogado, não há consenso nos tribunais sobre o tema; Hotmilhas voltou a fazer cotações, mesmo após atrasos de pagamentos

Por Redação 31/08/2023 às 08:55:35

Em crise, a 123milhas foi democrática na distribuição de danos: sobrou para todo mundo. Perdeu quem comprou passagens aéreas da linha promo, com a emissão de bilhetes com embarque previsto para o segundo semestre cancelada, e também quem tinha dinheiro para receber da venda de milhas. A Hotmilhas, que integra o grupo, anunciou no domingo (27) a suspensão do serviço e o atraso no pagamento dos clientes "devido à forte queda das vendas de sua controladora". Nessa terça-feira (29), o cenário para os consumidores ficou ainda mais nebuloso: a 123milhas entrou com um pedido de recuperação judicial, ainda em análise, e foi suspensa a emissão dos vouchers.

Só no terceiro trimestre de 2022, segundo a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (ABEMF), foram emitidos 138,2 bilhões de pontos/milhas. Desses, apenas 6,2% foram acumulados por compra de passagens aéreas, mas entre os benefícios resgatados, 86,8% foram convertidos para voos.

A influenciadora digital Ana Carolina Alves Almeida, de 30 anos, tinha cerca de R$ 3 mil para receber da Hotmilhas, que faz parte do grupo da 123milhas, e o pagamento já está atrasado há quase uma semana. Ela também adquiriu aéreo para viajar para os Lençóis Maranhenses, no Brasil, México e Itália, com embarque previsto até 2026, mas diante do recente pedido de recuperação judicial da empresa, a influenciadora já não tem perspectiva de viajar. "Eu estava tranquila, porque via muitas pessoas falando que davam certo, inclusive familiares… Até que aconteceu isso aí, né, essa bomba", lamenta.

Desde meados de agosto do ano passado, o servidor público Gian Gabriel, de 27 anos, começou a investir no mercado de milhas. Sua primeira venda, de 100 mil milhas, rendeu R$ 1,8 mil. No total, ao longo desses meses, ele chegou a negociar cerca de 3,3 milhões de milhas, recebendo cerca de R$ 84 mil. "Eles [Hotmilhas] pagaram direitinho. Não tinha reclamação, havia propaganda deles em todo lugar nos aeroportos, na pandemia parcelaram, mas pagaram", detalha.

Gian explica que passou a concentrar todas as suas compras no cartão de crédito, pegar pontuação com parentes e comprar milhas para revendê-las mais caras para essas plataformas.

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Decidio a investir neste mercado, ele chegou ainda fazer um curso, ao custo de R$ 500, para entender a dinâmica das negociações e, como benefício, entrou para um grupo, onde recebe dicas diárias de quando fazer as operações. "Se eu queria comprar uma TV, esperava a promoção que dava 30 mil milhas ou a transferência bonificada, que podia virar 60 mil", explica.

Agora, Gian, está com uma expectativa amarga pelo dia 1° de setembro, quando teria que receber a primeira parcela dos R$ 25 mil que tem de crédito com a Hotmilhas. "Desse montante, R$ 5 mil seria de lucro e o resto é para pagar o que comprei de milhas para vender. Gastei cerca de R$ 20 mil do cartão. Comprei, por exemplo, umas milhas da Latam por R$ 24,50 e a Hotmilhas estava pagando R$ 28,50 por elas", explica.

O servidor público conta que não consegue fazer contato com a empresa pelo site ou chat, que sempre sinaliza que não há atendentes disponíveis. "O mais absurdo é que no dia que anunciaram a recuperação judicial voltaram a comprar milhas. Já é possível fazer cotação de novo", detalha.

A reportagem de O Tempo simulou uma cotação de venda de pontos da TudoAzul, da Azul Linhas aéreas. Por 12 mil milhas, a Hotmilhas paga de R$ 132, com recebimento em um dia útil, até R$ 270 em 150 dias úteis.

Nas condições para o contrato, a empresa avisa que, ao vender suas milhas, o cliente cede a ela o direito de usar a conta anual de emissões de passagens aéreas para terceiros. Ainda no caso do programa da Azul, o cliente dá à Hotmilhas o direito exclusivo de usar a cota de passageiros.

No grupo que Gian faz parte, com cerca de 300 integrantes, há quem tenha até R$ 150 mil a receber da empresa. "Eu contava com esse dinheiro para pagar despesa com dentista e vi que não vou receber. Vou avaliar se vou precisar fazer um empréstimo. Cair no rotativo do cartão é péssimo. Diferente da 123milhas, é nosso CPF na linha. Não posso declarar recuperação judicial e ficar sem pagar banco ", diz.

O servidor já consultou advogados que o aconselharam a esperar, visto que, teoricamente, o contrato dele ainda não foi descumprido. O prazo para pagamento é 1° de setembro.

Em nota, a Hotmilhas informou que a empresa está fazendo todos os esforços possíveis para regularizar a situação e honrar os compromissos firmados. "A Hotmilhas é referência no mercado e espera contar com a confiança de seus clientes para superar essa situação."

123milhas

Venda de milhas é ilegal, segundo aéreas

A prática da comercialização de milhas é vista como ilegal por entidades como a Associação Brasileira das Empresas Aéreas, que alerta os consumidores sobre os riscos de vender benefícios intransferíveis dos programs de fidelidade. "Os transtornos recentemente noticiados pela imprensa exemplificam o risco de se adquirir uma promessa de passagem sem estar relacionada à oferta oficial das companhias aéreas. As associadas Abear repudiam essa prática e têm fortalecido seus programas de fidelidade para evitar fraudes", alertou a presidente da ABEAR, Jurema Monteiro.

Companhias áreas, como a Azul, Latam e Gol, passaram a restringir o número de beneficiários para emissão de passagens por cinco CPFs favoritos, limitar a emissão de bilhetes ao ano e até vedar a transferência de nomes dos contratos dos programas de fidelidade.

O tema vem sendo alvo de diversas disputas judiciais no país entre as companhias aéreas e viajantes, que buscam respaldo no Código de Defesa do Consumidor para reivindicar seu direito de usufruir o benefício como querem. Segundo o advogado Gabriel Lucas Viegas, de 30 anos, da MP&C Advocacia, também professor universitário, não há uma uniformidade na jurisprudência nacional sobre o tema. "Ohando num primeiro momento, há a impressão que as decisões são mais favoráveis aos consumidores em Minas. Mas há divergência sobre o tema no Estado", explica.

O Estado mineiro é polo das maiores empresas do ramo. Além da Hotmilhas, a Maxmilhas também pertence à 123milhas, todas sediadas em Belo Horizonte.

Segundo o advogado, há juízes que entendem que a milhagem é um direito personalíssimo, ou seja, somente da pessoa que adquiriu. Outros entendem que o consumidor pode fazer o que bem entender com o benefício que adquiriu. Em BH, há decisões da 17ª Câmara Cível favoráveis à venda e, na 7ª Câmara, proibindo a comercialização.

"Ao que tudo indica, tribunais superiores, como o STJ, já foram provocados para decidir. Há um processo de BH em que a 17ª Câmara entendeu que não era possível [a venda], mas o cliente recorreu e, agora, provavelmente, vai subir para análise", explica. Decisões em instâncias superiores devem servir de precedentes para outros tribunais.

Segundo Viegas, quem se sentir prejudicado pelas empresas, deve procurar com urgência um advogado de confiança.

Procurada pela reportagem de O Tempo, a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (ABEMF), que abriga programas de fidelidade da Azul, Latam e Gol, não quis se pronunciar.

Com crise da 123milhas e Hurb, agências de viagens voltam a ter demanda alta

"Tenho trabalhado todos os dias, até de madrugada, para dar conta de tantas solicitações". O relato, num mix de desabafo e contentamento, é da Patrícia Saraiva, de 49 anos, que trabalha há 30 com turismo, mas há nove meses resolveu abrir sua própria agência de turismo. Desde o ano passado, Patrícia calcula um aumento de 70% no fluxo da empresa, após decepções de clientes com agências onlines em relação a pacotes comprados para embarque na pandemia, além da crise da Hurb e, recentemente, do mercado das milhas. "Isso tem sido muito bom. Não posso agir com demagogia. É a volta da credibilidade das agências", explica. Só nessa terça-feira, as ações da CVC, a maior e mais tradicional operadora de turismo do país, valorizou 6,36% na bolsa brasileira.

A empresária conta que, diante da crise da 123milhas, tem recebido um volume assustador de clientes. "Várias famílias tinham comprado passagem para ir para a Disney, em grupos de dez, doze pessoas, e estavam esperando só a passagem para ser emitida", conta.

Ela explica que as agências de viagens online, conhecidas como OTAs (sigla em inglês) no setor, oferecem preços que não existiam. "Sabíamos que isso poderia acontecer. A gente não conseguia ser competitivo diante dos sites. Nem nas companhias e hotéis tinham esses preços. Alguns clientes tiveram sorte de embarcar", explica.

Patrícia explica que agora está até com falta de mão de obra especializada para atender tantas demandas. Os clientes voltaram a procurar as agências tradicionais. "Temos nome e sobrenome. Sabem quem podem procurar em caso de problemas. Eles tem localizadores, mandamos emails confirmando tudo antes deles viajarem. O cliente entrega o sonho das férias dele nas nossas mãos. Temos que ter responsabilidade", afirma.

Ela explica que, durante a pandemia, ainda trabalhava como gestora em uma grande agência e cuidava da parte do reembolso. "Quem comprou em agência online não tinha com quem falar, teve que entrar na justiça. Quando for comprar pela internet, o cliente deve consultar o Reclame Aqui, olhar o Cadastur, cadastro do governo… Tem muito picareta no mercado, que não entrega o serviço contratado", justifica.

No entendimento de Saraiva, as milhas são um benefício que as empresas dão para o viajante para viajar e utilizar com sua família, uma maneira de fidelizar o cliente. "Estão lidando com milhas como moeda. As companhias aéreas viram prejuízo. Quem levava vantagem era quem movimentava isso como pirâmide financeira", diz.

Modelo de negócio não é sustentável

Em carta aberta divulgada na última semana, a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa) destacou que se torna impraticável a venda de pacotes turísticos abaixo do valor de mercado ou ainda, precificados muito futuramente, em especial para períodos em que sequer existem preços publicados ou disponibilizados para a venda, pois ao final serão os prestadores de serviços finais que informarão o valor mínimo do produto/serviço.

Segundo a Braztoa, um dos principais exemplos desta prática são as ofertas de passagens aéreas com mais de 11 meses de antecedência de embarque, quando as empresas aéreas ainda não abriram inventário para vendas, ou seja, sequer há o produto/serviço disponibilizado para venda.

"Não raro, algumas empresas ao comercializarem desta forma, ainda procedem com descontos de até 50% sobre os valores praticados pelas próprias companhias aéreas, tornando-se temerário o cumprimento da oferta/contratação".

Segundo a entidade, na realidade, o consumidor pode ter adquirido uma expectativa de viagem, e não a viagem em si, o que poderá se revelar em prejuízos futuros. A Braztoa reafirma que não existe milagre e que o consumidor deve sempre desconfiar de produtos turísticos com valores muito abaixo do mercado.

Fonte: O tempo

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