O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu quatro frentes de investida para
tentar tributar gigantes da tecnologia –as big techs. A ideia é propor ao
Congresso a taxação ainda neste ano.
O assunto é tratado por uma força-tarefa. Discutem o tema integrantes
dos ministérios da Casa Civil, da Fazenda, das Comunicações, da Cultura e da
Secom (Secretaria de Comunicação Social).
Os caminhos traçados incluem o chamado "fair share" –o pagamento pelo
uso de rede de telefonia; uma "Cide" para o jornalismo, em razão da degradação
do ecossistema de informação causada pelas big techs; uma taxação de vídeo "on
demand" (streaming, por exemplo); e a cobrança de imposto sobre a renda no
âmbito das discussões da regulamentação da reforma tributária.
De acordo com o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, a
taxação é urgente. "Não é uma discussão se a gente quer ou não quer fazer.
Temos de entrar nessa. Se não cobrarmos aqui o mínimo em relação ao resultado
delas [big techs], a diferença vai ser cobrada no exterior", afirma.
Para entrar em vigor em 2025, a cobrança de IR no Brasil teria de ser
aprovada neste ano por causa do chamado princípio da anterioridade. Segundo
Barreirinhas, muitos países da Europa e Ásia já começaram a cobrar as big
techs.
As plataformas não divulgam faturamento por país, e a Receita mantém as
informações sob sigilo. Porém, estudo do Centro de Políticas, Direito, Economia
e Tecnologias da UnB (Universidade de Brasília) feito para a Anatel (Agência
Nacional de Telecomunicações) traz estimativas de receita das big techs no
Brasil.
Ao levar em conta fatores como PIB (Produto Interno Bruto), PIB per capita,
população, quantidade de linhas de celulares e usuários da internet, o estudo
projeta que, em 2022, a Amazon, faturou US$ 27,079 bilhões no Brasil, a
Alphabet (dona do Google), US$ 10,095 bilhões; o Spotify, US$ 7,077 bilhões; a
Microsoft, US$ 7,076 bilhões; e a Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp)
faturou US$ 4,162 bilhões
O estudo aponta que as empresas digitais com subsidiárias no Brasil têm
encontrado instrumentos jurídicos para driblar ISS e ICMS, além de possíveis
mecanismos de planejamento tributário concentrarem os lucros extraordinários
nas sedes ou em países com baixa tributação.
Há projeções sobre potencial arrecadação com diferentes critérios, por
grupos de empresas, com base em dados de 2023. O potencial de arrecadação dos
serviços de email, armazenamento em nuvem e ferramentas de produtividade, que
incluem Alphabet, Dropbox e Microsoft, varia de R$ 3,3 bilhões e R$ 27,6
bilhões por ano, dependendo do modelo de tributação.
Já o potencial de arrecadação em compras online, que inclui Alibaba,
Amazon, Ebay e Mercado Livre, vai de R$ 2,8 bilhões a R$ 18,9 bilhões por ano.
Os serviços de streaming de áudio e vídeo, que incluem Amazon Prime, Disney +,
Spotify e Netflix, variam de R$ 3,5 bilhões a R$ 29,4 bilhões por ano.
Para serviços de redes sociais, nos quais os pesquisadores incluíram
somente a Meta, o potencial de arrecadação em 2023 vai de R$ 781 milhões a R$
6,5 bilhões.
Nesse cenário, as teles defendem o direcionamento dos recursos do fair
share para investimento em infraestrutura.
A medida, porém, poria fim à chamada neutralidade de rede, princípio
previsto no Marco Civil da Internet. Por essa regra, por exemplo, não é
possível cobrar mais de determinado usuário ou tornar a conexão mais lenta para
outro.
Segundo Vivien Suruagy, presidente da Feninfra, que representa as teles,
50% do tráfego de internet vem de seis big techs e 80% da rede móvel é ocupada
por aplicativos dessas empresas.
"Com a neutralidade da rede, não podemos cobrar nem melhorar a
qualidade. Vai chegar a um ponto em que vai parar", afirma ela.
O fair share é defendido pelo presidente da Anatel, Carlos Baigorri. A
agência abriu uma consulta pública sobre propostas para regulamentar os deveres
dos usuários das redes.
"O nosso olhar é como definir o que é adequado ou não no uso das redes
de serviços de telecomunicações para garantir que todos os usuários consigam
utilizar a rede, ou seja, que ela funcione", diz Baigorri.
Em público, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, afirma ser a
favor de taxar as big techs, mas ser "contra o fair share, que é justamente
taxar para os recursos irem para as teles": "Estamos buscando o melhor caminho
para estruturar projetos de inclusão digital e conseguir que esse dinheiro da
taxação fique no setor".
Nos bastidores, porém, ele defende o fair share, segundo três pessoas
próximas ouvidas pela reportagem.
Para Ricardo Campos, autor do livro "A Nova Relação entre Infraestrutura
e Serviços Digitais" e professor na Universidade Goethe em Frankfurt, "quem
utiliza mais deve pagar mais".
"A neutralidade de rede foi importante enquanto as teles eram gigantes e
o Facebook era pequeno. Agora, o setor das teles, com lucros em queda, é que
precisa de investimento", diz.
Os críticos, por sua vez, afirmam que os serviços ficarão mais caros.
"As rádios e TVs hoje têm vídeos e áudios na internet. Com o fair share,
isso vai acabar, porque elas vão ter de pagar mais, tudo ficará mais caro, e
essa conta vai cair no colo do consumidor", diz Flávio Lara Resende, presidente
da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão).
Na Coreia do Sul, único grande mercado que adotou o fair share, empresas
como o Twitch, de streaming de videogame, por exemplo, abandonaram o país por
causa de custos operacionais maiores.
Segundo Alessandro Molon, diretor-executivo da Aliança pela Internet
Aberta, o consumidor, que já paga pelo pacote de dados, acabará pagando duas
vezes, porque as taxas sobre as big techs serão repassadas. "A taxação das big
tech deve se realizar por meio da reforma tributária, não pelo fair share."
No âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), o Brasil negocia o BEPS (combate à erosão da base tributária e à
transferência de lucros). Há multinacionais, em especial as big techs, que não
pagam impostos onde realizam receitas, mas em países com alíquota menor.
O chamado pilar 1 do BEPS negocia o cálculo para redistribuir lucros
extraordinários de empresas com faturamento global acima de 20 bilhões de
euros. O lucro excedente seria aquele acima de 10% em relação ao faturamento da
multinacional. Desse lucro excedente, 25% seriam realocados para outros países.
Só que os Estados Unidos resistem a abrir mão de arrecadação. Das dez
maiores empresas que teriam o lucro extraordinário redistribuído, nove são
americanas.
A OCDE quer chegar a um acordo global até junho. O prazo inicial era
dezembro de 2023, mas foi prorrogado.
Enquanto isso, o Brasil e os outros integrantes do grupo se
comprometeram a não criar impostos nacionais sobre as big techs. No entanto,
União Europeia e Canadá já apresentaram suas propostas.
No Brasil, há uma disputa interna. Parte do governo acha que o país não
deve esperar o acordo global, para se cacifar em negociações. Outra parte diz
que o Brasil deve respeitar essa moratória.
Para o chamado pilar 2, que determina um imposto global mínimo de 15%, o
governo brasileiro estuda uma proposta de implementação dentro da reforma do
imposto de renda.
Esse imposto incidiria sobre multinacionais com faturamento acima de 750
milhões de euros. Por exemplo, uma multinacional que tenha filiais no Brasil
paga 11% de imposto sobre seu lucro contábil. Pelo pilar 2, o Brasil teria
direito a tributar mais 4%.
Já a proposta da Cide para o jornalismo partiu da Secom. O dinheiro seria
destinado a um fundo que daria prioridade a fomentar jornalismo de grupos
sub-representados e desertos de notícias.
O imposto para vídeo on demand é um pleito do Ministério da Cultura.
Fazenda discute concorrência no mercado digital
O Ministério da Fazenda, em outra frente, estuda mudanças na Lei de
Concorrência para regular mercados digitais. Em janeiro, a pasta lançou uma
tomada de subsídios sobre o tema.
Técnicos discutem se será necessário criar uma legislação sobre concorrência
nos mercados digitais –nos moldes do DMA (Digital Markets Act) da União
Europeia–, se é preciso apenas fazer ajustes na legislação existente ou se não
será necessária nenhuma mudança.
O ministério vai fazer uma proposta até junho. A articulação é liderada pelo
secretário de Reformas Econômicas, Marcos Barbosa Pinto.
A visão é que as big techs adquiriram um nível de dominância de mercado
muito grande e a falta de competição pode afetar a economia brasileira como um
todo.
Entre as questões em discussão estão a obrigação de interoperabilidade
(permitir que usuários de um serviço de mensageria possam se comunicar com os
de outro) e coibir a autopreferência (ação de dar mais destaque ou favorecer
seus produtos, no caso da Amazon, ou resultados de busca, no caso do Google).
ADRIANA FERNANDES E PATRÍCIA CAMPOS MELLO
Fonte: BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)