Desde que atacou brutalmente Israel em 7 de outubro do ano passado, o grupo terrorista Hamas contava com a ignição de um conflito de maiores proporções no Oriente Médio a partir da previsível retaliação dura de Tel Aviv contra a Faixa de Gaza, que comandava desde 2007.
Cem dias depois da mais recente guerra entre o Estado judeu e um ente árabe, o objetivo não se confirmou da forma prevista pelo Hamas, mas nem por isso o risco de uma escalada da guerra no âmbito regional está descartado. Ao contrário.
O foco, contudo, não é o Irã, como temiam analistas. O Estado persa, por toda a retórica inflamada e o apoio a prepostos regionais como o Hamas, não parece disposto a ir a vias de fato e enfrentar os Estados Unidos, que viriam em socorro a Israel em caso de um ataque e mostraram os dentes militares para provar isso.
A coisa muda de figura em duas outras frentes. A mais importante, no norte de Israel, onde forças de Binyamin Netanyahu têm enfrentado, diariamente desde o início da guerra em Gaza, o Hezbollah, grupo fundamentalista apoiado por Teerã e aliado dos terroristas palestinos.
A briga é antiga e remonta à invasão israelense do Líbano em 1982, que na prática deu origem à agremiação liderada pelo xeque Hassan Nasrallah. O empate técnico no mais recente embate direto entre os rivais, em 2006, deixou aberta a possibilidade de uma revanche.
Com a nova crise, Israel tem feito ultimatos ao Hezbollah para que deixe a faixa neutra determinada pela ONU no sul do Líbano, retraindo-se para além do rio Litani. Tel Aviv fez esse movimento, respeitando a ainda contestada Linha Azul.
Nasrallah fala grosso, mas na prática tem evitado uma guerra aberta. "O Hezbollah precisa da causa palestina para justificar a recusa em desmantelar sua ala militar", afirma Hilal Khashan, professor de ciência política da Universidade Americana de Beirute. No Líbano, o grupo também é um importante partido político.
O grupo se apoia no formidável arsenal de mísseis e foguetes, que Khashan estima em até 200 mil, para manter uma posição pública de força. "Mas o arsenal intimida mais em teoria do que na prática", diz o professor, lembrando que a maioria das armas tem pouca precisão, e as que têm precisam ser retiradas de depósitos secretos e posicionadas em lançadores.
"Isso as expõem a ataques israelenses, já que o Hezbollah não tem uma defesa antiaérea decente", afirmou Khashan. Isso, somado ao temor de os Estados Unidos fazerem valer suas ameaças de atacar quem interferir na guerra em Gaza, tem mantido os libaneses na defensiva.
O tempo, avalia o acadêmico, "está chegando ao fim". Ele considera que, com a redução anunciada nas operações ao norte de Gaza por Israel e ações como assassinato de um líder do Hamas em Beirute, o cenário está armado para um tira-teima.
Com uma capacidade de engajamento de Tel Aviv aprimorada ao norte, algo que não era possível com a ação intensa contra o Hamas nos primeiros meses da guerra, é possível que Netanyahu já não tema a abertura de uma nova frente de combate total.
Por outro lado, é incerto o apoio da opinião pública israelense a uma guerra declarada pelo país. Apesar de Netanyahu ter suporte apenas marginal hoje, ele lidera um combate que lhe foi imposto pelo mega-ataque de 7 de outubro, de resto um vexame político e militar debitado de sua conta. Iniciar uma nova ação é outra história.
Já numa terceira frente da guerra, a escalada já é uma realidade. Antes considerado um teatro secundário, o mar Vermelho virou o centro de preocupações mundiais com o apoio dado ao Hamas pelos rebeldes pró-Irã houthis do Iêmen. Via de 15% do comércio marítimo mundial, a região viu o trânsito cair até 40% devido aos ataques a embarcações acusadas de ligação com Israel.
Na sexta (12), os EUA e o Reino Unido deixaram de agir reativamente com sua força-tarefa naval e lançaram ataques contra posições do grupo no país árabe, do qual ele domina uma boa porção no oeste, junto às costas do mar Vermelho. Neste sábado (13), Washington repetiu o feito, ainda que em menor escala.
Os houthis ensaiaram uma reação pontual e prometeram vingança, deixando em aberto a possibilidade de uma escalada ainda maior na violência. O presidente Joe Biden jura que não quer se envolver mais, mas que os bombardeios foram essenciais para deter mais ataques rebeldes.
Parece uma tática de enxugamento de gelo. O arsenal de mísseis houthis, com material antigo chinês e mais moderno do Irã, parece bastante disponível para novas ações. Aqui, menos do que algum risco existencial a Israel, a questão é a aposta dos rebeldes em trazer os EUA para a briga.
Isso pode elevar a animosidade, já grande em países árabes e de maioria muçulmana, como a Turquia, contra Washington. Isso já seria uma vitória estratégica do Irã —sem que o país dos aiatolás tenha de disparar um tiro, mesmo demonstrando limites estratégicos na crise.
Não lateral, há a questão da Cisjordânia, o território parcialmente governado pela Autoridade Nacional Palestina, rival do Hamas. Ali, as mortes e prisões de moradores têm sido diárias, na busca por elementos radicais, e a tensão é a maior em anos.
Concorre para o atoleiro a indefinição pública de Israel acerca de seus objetivos e, na hipótese de desmantelar o Hamas em Gaza, sobre o que ocorrerá com o território obliterado e seus 2,3 milhões de habitantes.
O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, falou superficialmente sobre devolver o controle político da Faixa aos palestinos, excluindo o Hamas, mas sem deixar claro a quais palestinos ele se referia.
Biden enviou quatro vezes seu secretário de Estado, Antony Blinken, para sinalizar que está preocupado com isso. Até aqui, não recebeu mais do que evasivas israelenses em troca, e esse prolongamento aumenta a fatura que os conflitos subjacentes à destruição de Gaza cobrarão dos EUA.
Gallant havia previsto no início do conflito uma guerra de três meses. Já se passaram dez dias do prazo, e a solução é tão elusiva quanto antes.
Igor Gielow/Folhapress