Em movimento inédito e controverso, o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) emitiu nesta semana um parecer se
posicionando contra a transferência de controle de uma empresa de celulose.
Escorando-se em uma interpretação da lei brasileira sobre compra e arrendamento
de terras por estrangeiros, analistas da autarquia assinam uma manifestação em
primeira instancia de um processo administrativo que, se tiver a concordância
da superintendência do Incra e superiores, pode barrar vultuosos investimentos
no País, causando um impacto incalculável para setores estratégicos da
economia.
Como pano de fundo da decisão reside uma antiga disputa entre duas
gigantes – de um lado, a J&F Investimentos, dos conhecidos Joesley e Wesley
Batista, e do outro lado a Paper Excellence, uma das maiores multinacionais do
mundo no setor de papel e celulose. No centro do conflito está a Eldorado
Celulose, uma das principais fábricas de celulose do Brasil, vendida pela
J&F à Paper Excellence em 2017. A operação acabou gerando um litígio porque
a J&F desistiu da venda mesmo após ter assinado o contrato, mas só agora a
legislação de venda de terras a estrangeiros começou a ser usada como pretexto
para tentar anular o negócio.
No parecer técnico que serve claramente aos interesses da J&F,
o Incra alega que a operação deveria ter sido condicionada a uma autorização
prévia do Congresso Nacional antes de o contrato ter sido assinado. A autarquia
sugere então uma solução negociada entre J&F e Paper Excellence, orientando
sobre a possibilidade de as empresas desfazerem voluntariamente um negócio que
já implicou o pagamento de bilhões de reais à própria holding dos Batista e a
fundos de pensão. No entendimento dos técnicos do Incra, a mudança de controle
configuraria aquisição de terras por investidor estrangeiro, já que a Eldorado
utiliza grandes áreas rurais para cultivo de matéria prima (eucaliptos).
Não passou despercebido que este presente do Incra foi entregue no
último dia 21 de dezembro, não mais que 24 horas após o outro presente do
Ministro Dias Toffoli, que suspendeu a multa de 10,3 bilhões de reais do acordo
de leniência do grupo J&F. O champagne deve ter rolado solto no réveillon
dos Batista!
Ocorre que o impacto da manifestação dos técnicos do Incra tem
potencial de alcançar além do litígio entre as duas gigantes. Certamente será
levado em consideração no cálculo de risco legal e institucional que todos os
investidores fazem antes de aportar recursos no país.
O Brasil, assim como todas as grandes economias, impõe o controle
prévio a certas operações de compra e venda de empresas. O mais conhecido é o
controle concorrencial, feito pelo Cade. Existem regras claras, um processo
claro, com prazos determinados e consistentes com o ambiente de negócios – tudo
para conciliar o controle estatal e a segurança jurídica dos investidores. Os
critérios de aprovação são objetivos e aplicam-se igualmente a todas as
empresas.
Com base nestas regras claras e objetivas, as operações são
negociadas e contratadas e aí, já com o contrato assinado e as divulgações
feitas, as partes correm atrás da aprovação. O negócio, apesar de já ter sido
fechado, fica suspenso até que as aprovações sejam obtidas, quando então pode
ser efetivado. Isso acontece em quase todos os setores regulados – energia
elétrica, telecomunicações, mineração, combustíveis, setor financeiro, e por aí
vai. E não é só no Brasil – esse é o sistema adotado no Estados Unidos, na
Europa e em praticamente todas as economias relevantes – até na China.
Essa segurança jurídica está por trás de grandes histórias de
desenvolvimento econômico ocorridas na última década no Brasil. Permitiu, por
exemplo, que o capital estrangeiro fomentasse a multiplicação da capacidade de
produção de energia a partir de fontes eólicas e solares, um verdadeiro case de
sucesso destacado mundo afora. São muitos os exemplos de grandes grupos
multinacionais e locais unindo forças para gerar crescimento, empregos e
desenvolvimento, em muitos casos em indústria que requerem o uso de vastas
propriedades imobiliárias. Esse é o caso da Aracruz que, no período do Regime
Militar, em que foram editadas as normas que restringem o investimento
estrangeiro em terras no Brasil, se estabeleceu no país unindo capital norueguês
ao nacional.
As próprias usinas solares e eólicas são estruturadas desta forma,
com painéis e torres ocupando grandes áreas (A canadense Elera, por exemplo,
anunciou que fará um aporte de R$1,5 bilhão em Minas Gerais para expansão do
complexo solar de Janaúba, em uma área representativa de 800ha, ou 8 milhões de
metros quadrados). O mesmo ocorre nos setores de etanol e outros
biocombustíveis, mineração, produção de commodities e papel e celulose, um dos
maiores exportadores do Brasil e com grande participação de grupos
estrangeiros.
Mas, na visão do Incra, com base em um conjunto de leis e decretos
da década de 1970 que visavam impedir que estrangeiros especulassem com grandes
áreas rurais no Brasil em detrimento da sua utilização produtiva, toda essa
lógica deve ser subvertida. Os agentes econômicos devem, antes mesmo de assinar
seus contratos, buscar uma aprovação no Congresso Nacional, com trâmite incerto
(podendo levar anos), critérios inexistentes e resultado consequentemente
imprevisível. A Cenibra está há quase uma década tentando obter a aprovação do
Congresso Nacional. É uma das pouquíssimas empresas de que se aventurou a
trilhar essa via crúsis. Pergunta-se ao leitor – Você se comprometeria a
comprar uma casa nova se dependesse de uma aprovação que levaria anos para
talvez ser obtida, a critério de um órgão colegiado político? E qual seria o
preço desta casa – o de agora, ou o da época da aprovação? E o vendedor,
estaria disposto a fazer negócio nesse ambiente?
Mas não é só – o Incra também entende que esta regra só se aplica
a alguns casos, e que quem decide se vale ou não a regra é o técnico doIncra
(ou o terceiro interessado em melar o negócio que apresenta uma denúncia
"anônima"). Sim, porque não se tem notícia de qualquer outra decisão semelhante
do Incra como esta relativa à Eldorado – então de duas, uma: ou o Incra escolhe
quem e como fiscalizar, ou nos últimos dez anos no Brasil nenhum estrangeiro
adquiriu empresa que operasse em terras rurais.
Apenas para ilustrar, recentemente, a chilena Arauco anunciou a
construção de uma fábrica de celulose de R$28 bilhões no município de
Inocência/MS, distante cerca de 130km do município de Três Lagoas/MS, em que
localizada a fábrica da Eldorado. Como a área pretendida pela Arauco para a
instalação da Fábrica em Inocência/MS (com impressionantes 1.000,00ha ou 10
milhões de metros quadrados), era considerada rural, em poucos meses a
Superintendência Regional do Incra autorizou a descaracterização da natureza
rural do imóvel, eximindo a Arauco de se sujeitar às restrições a estrangeiros.
Essa é a mesma Superintendência do Incra que não acatou pedido similar em
relação à fábrica da Eldorado.
Não há economia de mercado que resista a sistemas arbitrários de controle e
fiscalização. A regra fundamental dos investimentos é o "level playing field",
ou condições iguais para todos os agentes, baseadas em regras transparentes e
razoáveis.
O que o Incra acaba de fazer é gravíssimo. Coloca em xeque décadas
de aprimoramento regulatório e institucional conquistados a duras penas pelo
Brasil, e que o colocam hoje em posição vantajosa em relação a seus principais
concorrentes entre grandes economias emergentes. É preciso que os agentes
privados e públicos reajam, e que, se for de fato política de governo impor
este tipo de restrição a investidores estrangeiros, que ao menos isso seja
implementado às claras, de forma organizada e valendo para todos e não só para
os amigos – ou inimigos.
Diário do Poder