Uma força-tarefa da Polícia Civil de Goiás formada por sete delegados apurava uma chacina, a maior de Goiânia (GO), mas a investigação foi interrompida bruscamente e arquivada sem explicações.
Entre a noite de 7 e a madrugada de 8 de abril de 2017, um total de nove jovens foram executados nas ruas da capital goiana. Os quatro assassinos usavam capacetes, duas motocicletas e armas de fogo. Entre as vítimas, havia duas pessoas em situação de rua.
O Metrópoles teve acesso a relatórios inéditos cujo conteúdo mostra que os delegados tinham grandes suspeitas de que os autores da chacina eram policiais militares do batalhão de grupo tático de motopatrulhamento, o Giro.
A hipótese da investigação era que a chacina foi uma retaliação pelo assassinato da amante de um PM do Giro, horas antes dos assassinatos. O caso lembra a sequência de mortes em Guarujá (SP) após o homicídio de um policial, entre julho e agosto deste ano.
Leia os relatórios na íntegra aqui.
Na manhã de 7 de abril de 2017, o policial Zanderlan Bernardes, então com 30 anos, abraçava sua amante Liliane Pereira, de 23, em uma calçada de uma rua do Recanto das Minas Gerais, em Goiânia, quando foi surpreendido por dois assaltantes.
Zanderlan, que estava armado, reagiu e conseguiu matar um dos assaltantes, mas foi baleado no rosto e na perna. Ele ficou hospitalizado vários dias e sobreviveu. Leiliane também foi atingida e morreu no hospital, no fim da tarde.
Dos nove assassinatos que aconteceram naquela noite, seis foram no leste da cidade, mesma região em que mataram Leiliane.
Exames de microbalística comprovaram que oito das nove vítimas foram assassinadas pelas mesmas armas.
"Podemos afirmar que o mesmo grupo criminoso matou pelo menos oito pessoas", escreveu o delegado Carlos Douglas Pinto, então chefe da Delegacia de Investigação de Homicídios, em um dos relatórios.
O exame não foi feito no caso da nona vítima porque os investigadores não encontraram os projéteis que atravessaram o rosto de Kaio Morais, de 18 anos. Mas as características da execução foram as mesmas dos outros casos.
Ainda em 2017, meses após o crime, a Polícia Civil de Goiás analisou imagens de câmeras de monitoramento da noite da chacina. Foi uma tarefa difícil, pois muitas imagens tinham simplesmente sido deletadas.
No entanto, vídeos de câmeras de monitoramento que permaneceram intactos revelaram que duas motocicletas com quatro pessoas saíram do batalhão do Giro por volta das 20h44 e só retornaram às 3h07, exatamente o intervalo em que aconteceu a chacina.
Além disso, um relatório da Delegacia de Repressão a Organizações Criminosas (Draco) mostrou que, nos mesmos dias dos crimes, policiais do Giro pesquisaram a identidade de alguns dos mortos na chacina no sistema da Secretaria de Segurança Pública, usado para ver antecedentes criminais em abordagens.
A investigação da força-tarefa avançava em diferentes caminhos. Os delegados pediram os nomes de policiais do batalhão Giro e seus respectivos telefones para uma eventual quebra de sigilo telefônico. No entanto, as ações investigativas foram interrompidas ainda em 2018.
A "Chacina do Giro", como é conhecida no meio policial, é considerada a maior tragédia desse tipo de Goiânia.
O número de mortes naquela noite foi tanto, que a equipe de plantão da perícia criminal não conseguiu atender todos os casos. E onde foi possível atender, houve intimidação.
"Em um dos locais de crime, o delegado Thiago Martimiano e a agente Kamila presenciaram quando quatro homens, em duas motocicletas, chegaram acelerando seus veículos de forma intimidadora ao lado do cordão de isolamento, permaneceram no local alguns minutos e foram embora, sendo esta uma maneira clara de intimidar testemunhas e os investigadores presentes no local de morte", informa trecho do relatório da Polícia Civil.
A última movimentação para descobrir os autores da chacina foi do delegado Thiago Damasceno, então chefe da Delegacia de Homicídios em 2018.
Em junho daquele ano, ele enviou à Justiça um pedido de quebra de sigilo das estações de rádio-base, as ERBs, o que poderia ajudar na localização dos celulares que estavam próximos do local do assassinato. No entanto, esse pedido demorou mais de um ano para ser julgado, por questões burocráticas de definição sobre qual tribunal seria responsável.
Quando houve a definição, em março de 2020, o novo chefe da Delegacia de Homicídios, Rilmo Braga, informou ao judiciário goiano que não tinha mais interesse nessa quebra de sigilo.
Investigadores costumam usar dados de ERBs em investigações criminais complexas, como o caso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
Antes mesmo da definição sobre a quebra de sigilo das estações de rádio-base, o delegado Rilmo Braga já havia decidido arquivar o inquérito unificado que investigava a chacina. Ele também determinou que as mortes seriam apuradas individualmente em seus inquéritos isolados.
"Não há evidências robustas de envolvimento dos policiais militares, ou quem quer que seja", defendeu o delegado em um relatório final de apenas 4 páginas, em dezembro de 2019. O documento não cita, por exemplo, que oito das mortes tiveram a mesma autoria.
Depois do fim do inquérito unificado, metade dos inquéritos de vítimas da chacina já foram arquivados sem autoria definida. Ainda faltam quatro.
Em março deste ano, o promotor Sebastião Marcos Martins e o juiz Eduardo Pio Mascarenhas acompanharam a decisão do delegado, e o inquérito da chacina foi arquivado.
Procurado pela reportagem, o delegado responsável pelo arquivamento, Rilmo Braga, disse por mensagem que as investigações dos homicídios continuam pela Polícia Civil, e afirmou que somente teria desconsiderado o crime de associação criminosa.
A reportagem questionou pontuando que oito das mortes tinham a mesma autoria e que os inquéritos individuais de cada homicídio estavam sendo arquivados sem autoria definida. Rilmo ainda não respondeu ao questionamento. O espaço segue aberto.
Já a assessoria da Polícia Civil se recusou a dar um posicionamento, alegando que isso só poderia ser feito via pedido de acesso à informação.
O Ministério Público, por sua vez, informou que dará um retorno na próxima semana, pois o promotor Sebastião Marcos está de férias. O espaço segue aberto.
A PM informou por nota que está à disposição da justiça e que não compactua com desvio de conduta, mas não respondeu se houve a abertura de um inquérito policial militar sobre o caso.
Fonte: Metropoles