Mas a apresentação terminou em confusão e antes do tempo previsto. O jovem goiano radicado em BrasĂlia, e com nome de astro do rock, saiu encolhido. Teve medo. Além da situação, sentia as dores no corpo causadas pela doença. Mas não se arrepende. "Nem foi tempo perdido. Somos tão jovens", cantou Renato Russo para alegria de Elvis.
Elvis também queria cantar, se divertir. "A mĂșsica da minha vida é aquela. Quem acredita sempre alcança" (Mais uma vez, da Legião Urbana). Além das lembranças do show, junho virou um mĂȘs forte para ele por outro motivo. O dia 19 viria a ser, a partir de 2008, o da conscientização mundial sobre a doença falciforme. Junho virou mĂȘs de cantar mais alto.Elvis faz o som ir longe contra o racismo (a maior parte dos pacientes é negra) e também a invisibilidade que, segundo ele e outras pessoas consultadas pela AgĂȘncia Brasil, comprometem o atendimento no sistema pĂșblico.
O ativista e coordenador cientĂfico da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal) foi o paciente mais velho do Brasil a receber o transplante de medula óssea para se curar da doença.
A anemia falciforme tem caracterĂstica hereditĂĄria (pode passar de pais para filhos, se ambos os genitores tiverem o traço da doença). Ocorre por causa de uma mutação genética, com a alteração no formato das hemĂĄcias (formato de meia-lua ou foice).
Isso gera um problema na produção da hemoglobina, proteĂna que dĂĄ a cor vermelha ao sangue e é responsĂĄvel por transportar o oxigĂȘnio pelo corpo. A doença ocorre por lesões vasculares e anormalidade na coagulação. Entre os sintomas, dores fortes pelo corpo e cansaço.
Hoje, aos 56, o ex-relojoeiro diz que nunca deixou de acreditar e insistir com outras pessoas na luta contra a doença, que causa dores fortes e que pode levar à morte. Após "centenas de internações", ele foi curado graças a um transplante de medula óssea (mais tarde também precisou receber um fĂgado).
Elvis pede polĂticas pĂșblicas e denuncia que a doença é invisibilizada pelo racismo estrutural. "A doença foi diagnosticada hĂĄ mais de um século e só foi avançar nas polĂticas pĂșblicas em 2005", afirma.
A médica Joice Aragão de Jesus, coordenadora de Sangue e Hemoderivados do Ministério da SaĂșde, também entende que a história do cuidado com a doença mostra que o problema não ganhou a atenção devida em vista de os pacientes serem da população negra e de maior vulnerabilidade.
"O racismo institucional é um processo sutil na população brasileira. Isso tem impacto também na qualidade da assistĂȘncia prestada a essa população".
Ela diz que até 2005 não existiam protocolos no Sistema Ănico de SaĂșde (SUS), com orientação de tratamentos. "Naquele ano foi publicada a primeira portaria criando a PolĂtica Nacional de Atenção Integral às pessoas com Doença Falciforme".
DaĂ em diante, foram estabelecidos protocolos de tratamento de cuidados na rede de hemocentros. "De 2005 a 2015, houve participação e realização de simpósios internacionais e nacionais. Então a doença ganhou mais visibilidade dentro da emergĂȘncia dos hospitais e nos ambulatórios".
Ela considera que, nos Ășltimos anos, houve uma desativação de polĂticas pĂșblicas e menos atividades de capacitação e pesquisa. "De fato, hĂĄ um impacto não só pela pandemia. Houve um arrefecimento nas atividades referentes às polĂticas pĂșblicas".
A médica diz que o atual programa é uma referĂȘncia como polĂtica de qualidade dentro do SUS.
"Nós tivemos uma projeção internacional em cooperação com paĂses da África, por exemplo (leia mais aqui sobre o tema). Agora, estamos retomando. A ciĂȘncia tem possibilitado melhoria na qualidade de vida. Nós mudamos a história natural da doença, que era de morrer até os cinco anos de idade".
A cientista social Maria Renó Soares, coordenadora da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal), que reside em Belo Horizonte (MG), lamenta a baixa visibilidade da enfermidade. "Mesmo sendo a doença hereditĂĄria com maior prevalĂȘncia no Brasil, pouco se fala. Por ser prevalente na população negra, é pouco divulgada. A gente ainda tem muita dificuldade de acesso ao tratamento. E isso se dĂĄ devido ao racismo", avalia.
Ela explica que hĂĄ uma estimativa de mais de 100 mil pessoas com a doença - "95% das pessoas com a doença são negras e a maioria é beneficiĂĄria do Bolsa FamĂlia. A maior dificuldade é de acesso ao tratamento, às medicações, às novas tecnologias. Principalmente no que diz respeito à urgĂȘncia e emergĂȘncia".
A cientista social lamenta que a mortalidade pela doença no Brasil ainda é muito alta. "HĂĄ sobrevida de pessoas de até 42 anos e a morte de mais de 30 mil pessoas por ano no Brasil, que poderiam ser evitadas se tivessem acesso ao tratamento adequado".
Um dos medicamentos utilizados é a hidroxiureia, de alto custo e que deve ser distribuĂdo pelos poderes pĂșblicos. A coordenadora da Fenafal diz que uma demanda importante é a autorização para que o Ministério da SaĂșde autorize o remédio jĂĄ fracionado para a criança, a fim de evitar que haja a manipulação incorreta do medicamento a partir do mesmo remédio dado ao adulto.
Uma polĂtica pĂșblica importante foi a possibilidade de o Teste de Pezinho poder fazer o diagnóstico precoce. Isso pode salvar a vida da criança, jĂĄ que o tratamento pode ser iniciado mais cedo.
No caso de Elvis, os pais descobriram a doença quando ainda era criança. Ele conviveu com dores indefinĂveis e incontĂĄveis internações demoradas. O problema só foi resolvido com o transplante de medula óssea. Ele foi um dos primeiros casos no Brasil. "Fui indicado porque tinha muita crise de dor. Em 2005, fez o procedimento na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto (SP).
Para realizar o transplante, ele descobriu que o irmão, Elder, quatro anos mais novo (que não tinha a doença) era 100% compatĂvel. Atualmente, o coordenador cientĂfico da entidade de paciente com a doença explica que o procedimento tem sido feito até com compatibilidade de 50% entre paciente e doador.
Elvis tinha 38 anos de idade quando se submeteu ao procedimento para colocar fim às crises em que precisava até de morfina para amenizar a dor. Outra terapia que o relojoeiro descobriu foi escrever. Fez uma autobiografia: Quatro décadas de lua minguante.
PĂĄginas especiais são dedicadas ao irmão. "Nunca briguei na vida com ele. Sempre foi um amigo. Tinha certeza de que ele era compatĂvel". O irmão, Elder, sabe que Elvis faria o mesmo por ele se precisasse. "Foi emocionante quando soube que poderia ajudĂĄ-lo".
No Distrito Federal, por exemplo, o hemocentro cadastrou, durante o ano de 2023, 26.510 doadores de sangue. JĂĄ as pessoas cadastradas no banco de doadores de medula óssea foram 1.283 pessoas. Cabe ao hemocentro "o fornecimento de todos os hemocomponentes necessĂĄrios para as transfusões demandadas no tratamento dos pacientes com doença falciforme".
A Fundação Hemocentro explica que o candidato à doação pode colher sangue e se cadastrar como doador de medula óssea no mesmo dia. "Nesse caso, basta agendar a doação e, no dia do atendimento, informar logo na primeira etapa que também deseja se cadastrar como doador de medula", esclareceu a entidade em nota.
Se Elvis é do rock, o servidor pĂșblico paraibano Dalmo Oliveira, de 56 anos, nascido em Guarabira e radicado em João Pessoa, aprecia o forró e as festas de São João, que ocorrem nesta época do ano principalmente em Campina Grande (PB). Ele é da Associação Paraibana dos Portadores de Anemias HereditĂĄrias e foi diagnosticado com a doença quando era criança.
"Só descobrimos porque minha mãe me levou para fazer exames em João Pessoa. A minha sorte é que o diagnóstico foi bem precoce para aquele momento. E isso me salvou e me deu uma qualidade de vida até hoje". O tratamento limitava-se à transfusão de sangue. Lembra-se que precisou fazer transfusão de sangue até os 15 anos de idade. As crises foram diminuindo à medida que foi envelhecendo. E resolveu depois ajudar pessoas que entendiam pouco sobre a doença.
"Como a doença atinge mais fortemente a população negra, existe ainda hoje uma negligĂȘncia. Nos estados brasileiros onde a população negra é mais presente, a doença também é mais presente. Mesmo assim, a gente ainda encontra médicos e enfermeiros desinformados sem saber como tratar o paciente que chega à unidade".
Ele diz que cobra muito das autoridades médicas que proporcionem e conscientizem sobre o aconselhamento genético para casais que pretendem ter filhos."Um exame de sangue simples, que é a eletroforese da hemoglobina, gratuita pelo SUS, pode identificar se os pais carregam genes com possibilidade de ter um filho com a doença". Dalmo tem cinco filhos. Nenhum deles tem a anemia falciforme.
Para proporcionar mais conhecimento sobre a doença, o Ministério da SaĂșde promove, nesta segunda-feira (19), em BrasĂlia, quatro palestras, das 9h às 12h, com profissionais de saĂșde especialistas no tema. O encontro serĂĄ no auditório PO 700, na Avenida W5.
No dia 22 (quinta-feira), no mesmo local, a coordenação da Fenafal promove seminĂĄrio nacional, das 13h às 17h, e uma audiĂȘncia pĂșblica no Senado, de manhã (a partir das 9h). O telefone para informações é o (31) 99199.6985.
Fonte: AgĂȘncia Brasil