Seios inchados, dores de cabeça e sonolência foram os primeiros sintomas que Ana* sentiu. A mulher, de 35 anos, desistiu três vezes de fazer o teste de gravidez de farmácia por medo do resultado. Depois que o exame de sangue deu positivo, a manicure conta que viveu "os piores dias de sua vida".
Ana* ainda não pensava em ser mãe quando a barriga começou a crescer. Ao se aproximar da sétima semana de gravidez indesejada, ela foi obrigada a reviver os traumas de dois meses antes, quando acabou abusada sexualmente em São Sebastião.
O caso ocorreu em agosto de 2017. A manicure estava voltando para casa, depois de sair de um bar, quando foi abordada por um homem. Ele a ameaçou com uma faca e a empurrou para um pequeno beco entre duas casas. Ana* conta que o estupro de 10 minutos deixou traumas para uma vida inteira.
"Minha vida acabou ali. Naquele dia, naquele beco e naquele momento. Há coisas que a gente nunca acha que vai acontecer com a gente. Eu mesma achei que não aconteceria comigo, mas aconteceu", lamenta.
Depois do estupro, Ana* relata que recebeu o apoio da mãe para procurar acompanhamento psicológico e só conseguiu voltar a trabalhar após três semanas. Quando sentiu que estava recuperada, percebeu os primeiros sintomas da gravidez.
"Foi muito difícil me reerguer. Precisei de terapia para conseguir aprender a enfrentar o problema e a falar sobre o abuso. A minha vontade era de me esconder, de me afundar cada vez mais em um buraco sem fundo e não sair nunca mais. Quando voltei a trabalhar e consegui ter uma vida normal, comecei a viver o pesadelo de achar que estava grávida", lembra Ana*.
Quando recebeu o resultado positivo do exame, procurou na internet as opções à sua disposição, que incluíam comprar remédios abortivos ilegais. Ela, então, encontrou o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) que oferecia o procedimento de forma gratuita, sigilosa e sem qualquer tipo de barreira.
Saiba mais sobre o Programa de Interrupção Gestacional (PIGL)
Gravidez interrompida
Levantamento feito pela Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) aponta que, entre janeiro e abril de 2023, houve 63 interrupções de gravidez em decorrência de violência sexual, o equivalente a 15 abortos por mês. São 25 a mais do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando ocorreram 38 abortos legais. Em 2022, o número total de abortos chegou a 113.
"Foi muito difícil para mim. Eu sempre quis ser mãe, mas não conseguia continuar com a gravidez. Não achava certo, parecia que não pertencia a mim. Tinha medo de as pessoas acharem que era mentira, que eu não tinha engravidado do estuprador, que estava grávida de algum homem que eu fiquei por aí. Mas eu nem tive mais relações sexuais depois do estupro. O filho era dele, do monstro mesmo."
"Eu pensei em fazer o aborto clandestino, na época soube de alguns lugares que faziam e alguns remédios que eu poderia tomar, mas li vários relatos de mulheres que morreram no aborto. Eu demorei a decidir que faria o aborto legal, porque achei que seria muito burocrático, ainda mais que eu não tinha registrado boletim de ocorrência. E eu não queria demorar muito e esperar a barriga crescer", relata.
No DF, 43 mulheres perderam a vida em abortos; sobreviventes contam dramas
Depois que passou pelo aborto, Ana* achava que tiraria um "peso das costas", mas o quadro de depressão piorou e ela voltou a ter de se afastar do trabalho e das atividades normais. "Até hoje não sou uma mulher 100% bem, nunca vou ficar. Isso é um marco, um trauma que carrego comigo sempre", desabafa.
Atendimento
Há mais de 80 anos o aborto é considerado legal no Brasil, quando a gravidez é resultado de estupro ou põe em risco a vida da gestante. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a permitir a interrupção da gestação em caso de feto com anencefalia – cérebro subdesenvolvido e crânio incompleto.
Apesar disso, algumas mulheres ainda encontram dificuldades para fazer o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, por essa razão, precisam tentar a interrupção em outro país. Pensando em ajudar essas mulheres, Juliana Reis criou o projeto Milhas pela Vida das Mulheres.
A organização sem fins lucrativos envia brasileiras a países da América Latina, sobretudo à Colômbia, para que elas possam fazer um aborto cirúrgico, seguro e dentro da lei. Doações em dinheiro e de milhas aéreas bancam as viagens.
"Apesar de ser legal, em alguns casos, o aborto no Brasil ainda é muito difícil. O sistema oferecido é mais do que precário, é inseguro. Já ouvimos relatos de mulheres que chegaram na unidade de saúde e a médica mentiu. Disse que ela estava com meses de gravidez que não eram compatíveis com a data do estupro. Algumas meninas também foram exigidas a mostrar um boletim de ocorrência, o que é ilegal", aponta Juliana.
Além dos casos de violência sexual, o Distrito Federal realizou 22 interrupções de gravidez com riscos de saúde à mãe, em 2022. De janeiro a abril de 2023, já foram 13 casos de abortos legais com risco à gestante.
*Nome fictício a pedido da entrevistada
Metropoles