A ditadura militar brasileira e o nazifascismo são os temas mais contestados pelos revisionistas ideológicos, ou negacionistas, como são popularmente conhecidos, em escolas investigadas pela pesquisa Tuas Ideias Não Correspondem aos Fatos: O Ensino de História e o Revisionismo Ideológico em Difusão na Atualidade, do pesquisador Pedro Zarotti Moreira, que desenvolveu o estudo em seu mestrado profissional na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A pesquisa é uma das primeiras a investigar a ação dos revisionistas ideológicos dentro das escolas do ensino bĂĄsico. Entre algumas ações dos revisionistas ideológicos estĂĄ a abordagem que coloca a escravidão no Brasil em uma escala menos violenta; inversão do espectro polĂtico do nazismo, tentando classificĂĄ-lo como um movimento de esquerda; e a atenuação do carĂĄter deletério da ditadura militar brasileira, iniciada em 1964.
O pesquisador define o revisionismo ideológico como a anĂĄlise dos fatos do passado feita com metodologias próprias tendenciosas, sem a utilização de procedimentos acadĂȘmicos reconhecidos da pesquisa historiogrĂĄfica. Segundo Zarotti, os revisionistas ideológicos utilizam-se, por exemplo, de casos particulares ou excepcionais do passado para "provar" que teses consagradas por historiadores acadĂȘmicos seriam "falsas".
O professor concentrou-se em analisar o impacto desse fenômeno no exercĂcio da docĂȘncia dentro das salas de aula da educação fundamental e média. Para tanto, entrevistou, por meio de um questionĂĄrio com 31 questões, 85 professores voluntĂĄrios, participantes do Profhistória, programa de pós-graduação, coordenado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), composto por vĂĄrias instituições de ensino superior destinado a professores de História que atuam na educação bĂĄsica.
A maioria dos docentes entrevistados atuava na Região Nordeste (36%), seguido pelos que davam aula no Sudeste (32%), Sul (20%), Centro-Oeste (6%) e Norte (2%).
Dos 85 professores ouvidos, 66 disseram ter presenciado alguma manifestação de revisionismo ideológico no espaço escolar. Os temas mais questionados, de acordo com o levantamento, foi a ditadura militar brasileira (41 citações), nazifascismo (15), escravidão (7), racismo (4), religiões de matriz africana (4), e indĂgenas (4).
Segundo a pesquisa, dos 66 professores que informaram ter ao menos um conteĂșdo questionado no espaço escolar, 60 mencionaram que esse questionamento partiu dos alunos; em seguida, aparecem os pais e ou responsĂĄveis (27 menções); colegas professores (23); e superiores na instituição de ensino (17).
"O que me chamou muita atenção, que eu considero muito mais alarmante do que os próprios pais, os próprios alunos em si, são as outras figuras que apareceram com um certo nĂșmero também destacado, embora menor. A gente tem superiores, diretores, coordenadores, e os próprios colegas [professores], que também estão manifestando revisionismo", disse o pesquisador.
"Em um espaço que deveria ser de combate, de anĂĄlise, de desmontagem dessas narrativas revisionistas, ela encontra ali dentro atores sociais que estão endossando essas falas. Os professores que deveriam estar a favor do conhecimento cientĂfico, mas estão ali se posicionando contra ele, comprando esses discursos revisionistas e trazendo para a escola. Isso me preocupa muito", acrescenta.
Na resposta de um dos questionĂĄrios da pesquisa, chamou a atenção de Zarotti o depoimento de um professor que apontou a ação de um intérprete de libras, que deveria transmitir aos alunos com deficiĂȘncia auditiva o conteĂșdo da fala do docente, mas só o fazia quando concordava com a abordagem. "Ele fala assim, hĂĄ 2 anos tinha uma aluna surda, o intérprete só sinalizava aquilo que concordava. Chegou a passar aulas inteiras em silĂȘncio quando abordei a ditadura militar".
A pesquisa mostra ainda que os casos de revisionismo ideológico ocorrem principalmente nas turmas do Ășltimo ano do ensino fundamental (9Âș), e nos trĂȘs anos do ensino médio, principalmente no terceiro. Para o pesquisador, isso pode ser explicado pela questão etĂĄria dos alunos, e pelos temas históricos que são previstos para serem tratados nas turmas desses anos.
"Ali pelos 13, 14 anos, os alunos começam a assumir uma postura mais questionadora, de embate com o professor. Isso vai se tornando mais comum, principalmente a partir do oitavo ano e o começo do nono ano. Como se eles criassem mais coragem de testar os limites dos professores. Então o revisionismo meio que dĂĄ uma certa munição para esses alunos entrarem em conflito com os professores", explica o pesquisador.
Segundo ele, nesse perĂodo, o conteĂșdo programĂĄtico passa a abordar temas mais polĂȘmicos, normalmente questionados pelos revisionistas. "É a época que a gente tem a Revolução Russa, que a gente tem o Stalinismo, o próprio Fascismo, Nazismo, a ditadura militar, que é o grande ponto de maior tensão. Todos eles ocorrem a partir do nono ano".
Para Zarotti, o aparecimento nas escolas do revisionismo ideológico nos Ășltimos anos pode ser entendido a partir da confluĂȘncia de vĂĄrios fatores, entre eles a polarização polĂtica ideológica, presente hĂĄ pelo menos 10 anos no paĂs; o avanço da internet e das redes sociais em uma arquitetura de bolhas, com pouco espaço para a pluralidade; e a chegada da direita mais radical ao poder.
"Isso dĂĄ um certo verniz de credibilidade para o movimento porque quando vocĂȘ vĂȘ uma pessoa chefe do executivo difundindo uma fala revisionista, isso meio que legitima o movimento para aquela pessoa que estĂĄ ali mais ou menos no meio do caminho, que é até uma direita mais moderada ou que estĂĄ descontente com alguma coisa da situação, ou que não tem uma outra fonte de informação".
Segundo o professor da ĂĄrea de Ensino de História da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Marcus Bomfim, uma das explicações para o aparecimento do negacionismo dentro das salas de aula e do questionamento do ofĂcio do professor historiador estĂĄ ligada à reação de classes sociais que viram seus privilégios serem ameaçados a partir do inĂcio do século 20 no paĂs.
"Estou me referindo, sobretudo, à maior diversificação do corpo de pessoas na universidade, maior distribuição de renda, a ascensão social da classe D e E para classe C, da classe C para a classe B. Tudo isso, de alguma forma, evidenciou como o Brasil foi estruturado a partir de determinados privilégios", destaca.
De acordo com ele, esse processo passou a mostrar de forma clara a presença de privilégios na sociedade, o que levou a uma reação das classes privilegiadas contra essa nova leitura da realidade brasileira. "[Isso] fez com que se criasse um movimento de refutar qualquer outra leitura de mundo que pudesse colocar em risco o status quo, que pudesse colocar em risco o que jĂĄ estava colocado", avalia.
"Quando se produz leituras de mundo calcadas numa perspectiva democrĂĄtica, de busca de maior justiça social, de denĂșncia de privilégios, isso faz com que muita gente se sinta ameaçada. E, ao se sentir ameaçado, vocĂȘ, ao invés de discutir o argumento, normalmente vocĂȘ questiona o interlocutor. VocĂȘ nomeia o professor como doutrinador. Começa o processo de vigilância maior e uma tentativa de equivaler conhecimento e opinião".
Bomfim ressalta que o combate ao negacionismo dentro das salas de aula passa pela valorização dos docentes como intelectuais que participam da construção do que é ensinado dentro das escolas. Os professores, por sua vez, devem focar nas leituras da realidade que são baseadas na preocupação com a vida, com os direitos humanos e com a democracia.
"Trata-se de que o professor assuma seu compromisso com a produção de uma narrativa histórica na escola que articule os conteĂșdos produzidos pela ciĂȘncia histórica com valores focados no que eu chamo de democracia radical, a preocupação com a vida, com os direitos humanos", disse.
"Infinitas possibilidades existem para que narrativas históricas estejam no domĂnio do verdadeiro. Mas quando essas narrativas tensionam vidas, fazem com que algumas vidas sejam mais perecĂveis do que outras, ou, no outro extremo, que sejam mais dignas de viver do que outras, isso coloca em risco o pacto civilizatório".
Fonte: AgĂȘncia Brasil