Um teste ao leitor: responda rápido, qual foi a última guerra ocorrida em território sul-americano? Quem tem um pouco mais de idade vai se lembrar do conflito envolvendo Argentina e Reino Unido, em 1982, a Guerra das Malvinas – disputa breve e vencida pelos britânicos nas Ilhas Falklands.

A resposta estaria errada. Muito provavelmente o leitor não se lembrará, mesmo para alguém mais ligado ao mundo militar, mas o correto seria se referir a um conflito praticamente esquecido, ocorrido 13 anos depois: a Guerra do Cenepa, em que durante um mês se digladiaram Peru e Equador, foi a última na América do Sul.

Em 1995, o então presidente peruano, Alberto Fujimori, buscava se cacifar à reeleição. A campanha estava se aproximando e ele precisava encontrar uma forma de trazer a população para seu lado de forma rápida e mais forte, inclusive eleitoralmente. Usou uma estratégia conhecida para aumentar a própria popularidade: reavivar um conflito antigo sobre uma disputa de fronteiras com um país vizinho.

E foi assim que, de 26 de janeiro a 28 de fevereiro daquele ano, os países entraram em uma guerra não declarada, em que tropas se enfrentaram na fronteira em litígio, na região leste da chamada Cordilheira do Condor. Cenepa é o nome do rio que deveria ser o divisor de águas, de acordo com os equatorianos. Ali se retomava uma disputa surgida ainda na primeira metade do século 19, que se agravou na década de 40 do século passado, ocasião em que houve o Protocolo do Rio de Janeiro, quando Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos avalizaram um acordo entre os dois litigantes. A coisa teve desdobramento em 1981, com a Guerra do Paquisha, com vitória peruana, na mesma região. A tensão continuou e foi o estopim para o conflito na década seguinte.

As operações militares na Guerra do Cenepa ocorreram em território delimitado, em área de selva e de difícil acesso, com grandes desafios climáticos e logísticos para movimentos militares. A novidade, em parte causada por essas barreiras, foi o inédito enfrentamento aéreo entre caças de duas nações sul-americanas. Em pouco mais de um mês, o conflito estava resolvido, por meio do Tratado do Itamaraty, mediado no Brasil. Três anos depois, viria a assinatura da Ata de Brasília, com um aperto de mãos entre o já reeleito Fujimori e seu colega equatoriano, Jamil Mahuad.

Desde então, embora longe de se apresentar como um continente pacífico – haja vista a violência causada por fatores como o poder do narcotráfico, o crime organizado como um todo, as crises econômicas, o grande número de pessoas abaixo da linha da pobreza e a escandalosa desigualdade social, características da região –, nunca mais houve um enfrentamento militar na região.

Nicolás Maduro quer que a população venezuelana avalize seu intuito de anexar grande parte da Guiana | Foto: Reprodução

Desde então, também, nunca houve como agora uma ameaça tão grande à quebra dessa espécie de tabu: daqui a uma semana, no domingo, 3, a partir de uma determinação do presidente Nicolás Maduro, a população da Venezuela irá às urnas para dar sua posição sobre um conflito de origem tão antiga quanto o que causou a Guerra do Cenepa: a posse da chamada Guiana Essequiba ou região do Essequibo – também nome do rio referenciado como divisor de águas do território.

Para chegar à raiz da questão é preciso conhecer um pouco da geografia e da história envolvidas na controvérsia. A subdivisão territorial ao norte da América do Sul é conhecida como Planalto das Guianas. O termo guiana (que deve ser pronunciado no português brasileiro como ditongo "ui", como no nome "Rui") ou guayana, em espanhol, é originário da língua dos aruaques – nome que se refere a diversos grupos indígenas amazônicos – e significa "terra de muitas águas".

Durante o período colonial, a região das Guianas foi o que se poderia chamar de "terra de ninguém" e, ao mesmo tempo, local disputado por muitas nações. Holandeses, britânicos e franceses guerrearam por ali, naturalmente, com os "donos" espanhóis e portugueses. O planalto acabou fatiado. De leste para oeste hoje estão: uma porção brasileira que hoje é o Estado de Roraima; a região administrativa da Venezuela chamada Guayana; a Guiana, antiga colônia britânica, na qual ao leste do Rio Essequibo, está a Guiana Essequiba, a área reclamada pela Venezuela e que será submetida ao referendo de Maduro; depois, vem o Suriname, que um dia foi a Guiana Holandesa; a Guiana Francesa, território ultramarino da França; e o Amapá, outro Estado brasileiro, que no passado foi conhecido como Guiana Portuguesa.

A região, que nunca havia sido o centro das atenções da colonização portuguesa e espanhola, voltou a ser disputada no século 19, com a proclamação de independência de vários países. A da Venezuela ocorreu em 1824 e, desde então, o país nunca aceitou a região da atual Guiana até o Rio Essequibo como pertencente ao vizinho. Foram vários momentos de agravamento da situação, que em 1835, teve sua demarcação realizada, a pedido do governo britânico, pelo alemão Robert Schomburgk.

Ele estabeleceu a terra compreendida entre os rios Orinoco e Essequibo como de posse de seu cliente. O conflito entre o Reino Unido e a Venezuela teve um ponto chave na década de 1890, quando foi instalada uma corte arbitral, por sugestão dos Estados Unidos. Ficou estabelecido o Tratado de Washington, assinado em 1899, que deu ganho de causa aos britânicos.

Um novo questionamento por parte dos venezuelanos só viria em 1962, com uma informação ao secretário-geral das Nações Unidas sobre a disputa com o Reino Unido. O país buscava algum acordo, o que foi recusado pelo colonizador da Guiana, para quem o assunto já estava encerrado desde o tratado do fim do século anterior.

A intermediação da ONU gerou o Acordo de Genebra, em 1966, assinado inclusive pela Venezuela, pelo qual uma comissão resolveria o caso em quatro anos. Só que a Guiana se tornou independente meses depois, e o acordo não chegou a lugar nenhum. A questão pareceu que iria ficar por isso mesmo, o que foi reforçado em 2004 após uma visita oficial à Guiana do então presidente Hugo Chávez.

Um fato, porém, mudaria o rumo da conversa. Em 2015, o pequeno país ganhou seu "pré-sal": foram descobertas grandes reservas de petróleo em sua costa. Mais: é um óleo de alta qualidade – bem superior, inclusive, ao da abundante quantidade existente na Venezuela.

Rio Essequibo, que corta ao meio a Guiana e é o ponto até onde a Venezuela quer anexar do país vizinho | Foto: Reprodução

As reservas de petróleo são tidas como de potencial expansão rápida nos próximos anos e indicam a possibilidade de a Guiana se transformar no maior produtor de petróleo do mundo, superando o Kuwait.

A descoberta, obviamente, reacenderia os ímpetos de um governo como o de Nicolás Maduro, ainda mais com a negociação do vizinho com a ExxonMobil, gigante petrolífera estadunidense, que investe no campo guianense. Para o autoritário presidente – ou ditador, para alguns –, é mais um avanço do imperialismo sobre o patrimônio de sua pátria. "Que o povo decida o destino da Guiana Essequiba! Muito dinheiro está circulando para comprar políticos e políticas da ultradireita para se oporem ao referendo e enfraquecer e dividir novamente a Venezuela", discursou Maduro, na semana passada.

Em meio a isso, a Guiana já levava o caso à Corte Internacional de Justiça (CIJ). O presidente do país, Irfaan Ali, comanda forças militares tão limitadas que não se dividem em armas – ou seja, não existem Exército, Marinha e Aeronáutica propriamente ditos. São cerca de 4,5 mil homens mal treinados. Não há nenhum avião de combate nem embarcação militar. Nada mais do que poucos blindados.

Já a Venezuela, apesar de todo o sucateamento dos últimos tempos e de ter equipamentos ultrapassados, possui uma força militar relativamente adequada para o nível sul-americano. Destaque para os caças Sukoi, de origem russa, e que dariam muito trabalho mesmo para um país mais estruturado, como o Brasil.

O referendo é para guianês ver – as chances de a população dar um "não" às pretensões de Maduro são as mesmas de a Guiana, com seu "poderio", vencer um conflito armado com a vizinha. Seria o mesmo que esperar a vitória de um Uno Mille sobre uma Ferrari – ou, melhor comparando, a de um velocípede sobre o mesmo Uno.

A decisão sobre um ataque, portanto, estará nas mãos do presidente venezuelano. Ele tem, basicamente, os mesmos motivos históricos para invadir o vizinho que Vladimir Putin alegou em relação à Ucrânia. O que não haverá, em princípio, será a mesma reação mundial ao ataque. A Guiana talvez pudesse contar com o apoio dos Estados Unidos contra uma investida: um aviso em forma de ultimato a qualquer movimentação dos homens de Maduro poderia ser eficaz.

Ocorre que Washington já está sobrecarregada de salvaguardar batalhas e alertas de batalhas mundo afora: fora o apoio a Volodymyr Zelensky – que quer sempre mais armas e recursos para enfrentar os russos –, agora há a cobertura a Israel, de olho no Irã, além do potencial e até iminente, na visão de alguns, conflito entre China e Taiwan. É muita guerra para quem se arvora como palmatória do mundo tomar conta ao mesmo tempo. A tendência é que Guiana, apesar da proximidade, fique para depois.

Estados Unidos à parte, uma solução mais prática para se defender seria usar o mesmo expediente a que países da África recorrem em seus conflitos: a contratação de mercenários. Não é algo comum na América do Sul, mas, se antecipar à investida de Maduro trazendo homens experimentados em combates mundo afora seria visto como uma medida necessária de legítima defesa e teria, se maior ou menor, no mínimo algum efeito dissuasivo.

Brasil daria passagem à tropa de Maduro em um eventual conflito?

Talvez a maior defesa para Irfaan Ali e sua Guiana seja a natural: a densa área florestal da fronteira. Não haveria condições para uma invasão terrestre direta pelos venezuelanos, que teriam de chegar ao território guianense pelo mar ou… pelo Brasil, passando por Roraima.

Aqui, das duas uma: ou o Brasil aceitaria dar passagem ou reagiria ao invasor. A proximidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com Nicolás Maduro poderia inferir que haveria um sinal verde ou vistas grossas, mas não seria tão simples assim, já que, antes de tudo, o chefe de Estado brasileiro criaria um desgaste imenso com seus próprios militares, já refratários ao regime de Caracas.

O buraco, no entanto, é muito mais embaixo. É que uma permissão de passagem de tropas estrangeiras, para ser dada pelo presidente, precisa ter pedido de autorização do Congresso Nacional, editado na forma de decreto legislativo, e consulta ao Conselho de Defesa.

O Artigo 21, inciso IV, da Constituição diz que "compete à União permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional", sendo essa permissão uma das competências privativas do presidente da República (Art. 84, inciso XXII), desde que autorizado pelo Congresso Nacional (Art. 49, inciso II). Indo além, esses três dispositivos constitucionais estabeleceram que o tema seria regido por uma lei complementar, que foi editada em 1997: é a Lei Complementar nº 90 (LC 90), que disciplina várias formas de ingresso, trânsito e permanência temporária de tropas estrangeiras no Brasil.

A LC 90 até estabelece algumas exceções em que o presidente da República pode dar a permissão sem ouvir o Congresso – caso de entrada de equipes para treinamento de militares brasileiros, por exemplo –, mas veda a "permanência ou trânsito de forças que provenham de países que estejam em guerra", exceto se essa circunstância for tratada em lei especial. E se Lula resolvesse, por si mesmo, dar essa permissão? Incorreria, de acordo com a mesma lei, em uma tipificação de crime de responsabilidade.

Outro detalhe da LC 90 é que determina uma consulta ao Conselho de Defesa Nacional, para o caso específico do trânsito de tropas estrangeiras – o que não estava previsto pela Constituição. A lei complementar estipula ainda que o pedido de autorização deve tramitar na forma de decreto legislativo, em regime de urgência. Um detalhe dessa tramitação é que este é um dos raros casos em que a realização de sessão secreta é obrigatória conforme os regimentos internos das duas casas do Congresso.

O mais provável mesmo é que nesse imbróglio o Brasil faça as vezes de mediador. É o que já tem acontecido, aliás. Na semana passada, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, coordenou uma reunião que envolveu todos os seus colegas da América do Sul. A pauta era o conflito. A Guiana já pediu para que Lula convença Maduro a não tentar anexar Guiana Essequiba.

Em meio a um caso que em que respingam antigas questões geográficas e histórias, há verdades que não têm como se esconder. A maior delas é o grande enfraquecimento por que passa a governança mundial, cujo órgão máximo, a ONU, está totalmente desmoralizado como instituição mediadora e supressora de conflitos.

Outro é que não só de petróleo vive o homem, mas ele continua sendo a motivação direta ou indireta de grandíssima parcela dos conflitos. Muitos países parecem viver ainda hoje no período pré-industrial e a Guiana, por exemplo, só agora, em plena era de contenção de emissão de gases, encontrou o ouro negro que liberta e engradece seu PIB. Como lidar com isso tudo?

O mundo é cada vez mais complexo. Um conflito pode estourar nas "costas" do Brasil e não há muita previsibilidade. Nada que seja muito diferente do contexto global atualmente.